vendredi 24 octobre 2008

Zeca Baleiro : « Compositores “brega” fazem parte da cultura popular ».

Zeca Baleiro, 19/08 (foto Daniel A.)

Nada mais complicado do que encontrar um artista na correria, em plena promoção do seu novo álbum... Quero dizer com isso que, minhas entrevistas, como jornalista estrangeiro, requerem mais disponibilidade por parte do artista, pois observo sua carreira sob um ângulo diferente: mais geral, num primeiro momento; mas também mais profundo, logo em seguida, explorando as facetas menos óbvias de um compositor. Isso pede tempo e tranqüilidade.
E eu tinha conseguido apenas 20 minutos com o Zeca Baleiro, mas meu objetivo secreto era conseguir “esticar” esse tempo. Afinal, foram quase 60 minutos em companhia do cantor maranhense, bem à vontade…Eu era o último jornalista daquela manhã de 19 de agosto, antes dele provar seu “brunch”… Neste formato de “blog”, decidi deixar muitos trechos, coisa que teria cortado no formato de jornal...
Enquanto explico ao Baleiro o projeto dum livro, a gente começa a falar sobre São Paulo...


Zeca
: ...e você, vai a São Paulo com freqüência?


Daniel
: Bom, só quando eu realmente preciso...


Z
: Você ama mesmo o Rio, hein?


D
: Na verdade eu não conheço bem São Paulo... eu me recordo de uma entrevista sua, parte de um de seus dvd´s, altas horas; e no meio da noite você fala da cidade...


Z
.: É, exatamente... no dvd “Pet Shop mundo cão” ...


D
: Você tem insônia, então deve ser difícil trabalhar de manhã, como hoje, por exemplo... ?


Z
: Quando a gente lança um disco, então, é pior... Mas eu de fato adoro as manhãs. É o melhor momento para me conectar com a tranqüilidade, eu me sinto cheio de energia, cheio de esperança (rs)... cheio de vida, né?


D: Bom, vamos então ao seu disco, que eu escutei rapidamente; afinal, eu não podia chegar aqui sem pelo menos uma carta na manga não é !? Foi o Antônio Miguel, d´O Globo, quem me deu... Rapidinho: já que a primeira coisa que eu li diz “volume 1”, como sou perspicaz , suponho então que vá existir um “volume 2”!!; mas depois de ter lido os textos, eu não tenho outro “gancho”... ou eu passei ao largo...

Z
.: Na realidade é apenas uma chamada de marketing; não há nada que aponte para algo que pode vir a remeter a esse “volume 1”. Você não viu o “release”?


D: Nem o release nem o disco! Eu fui abandonado... (rs), mas você vai me explicar...

Z.:
é, é isso, eu quero te mostrar... e pra te responder à questão do “gancho”...
Há nisso uma certa ironia, na verdade... todo mundo se pergunta do porque do “volume 1”, ainda mais quando o título é “O Coração do homem bomba”.

D
.: Não é um álbun conceitual, então...


Z
.: Não, na verdade o ponto de partida desse projeto é o resultado... Faz três anos que eu lancei meu último disco de inéditas, o “Baladas do Asfalto” (2005), que foi uma tentativa de fazer um pop mais assumido, FM, radiofônico... mais “friendly”, como diriam os americanos... e foi depois de apresentar o show sobre o conteúdo do disco ao longo de dois anos pelo Brasil todo, e assim... foi bom... E ao final de tudo isso, eu senti a necessidade de produzir um novo álbum de inéditas. Eu montei um estúdio para mim em São Paulo, bem pequeno, modesto... mas bom, com tudo que é preciso...e foi um projeto bem agradável, que me demandou menos pressão, e até me poupava de fazer a ponte aérea Rio-São Paulo a toda hora para estar com os músicos... o que me aborrecia um ponto quando fiz os discos anteriores. E agora, eu posso ficar uns cinco minutos no estúdio, sair pra tomar uma cerveja, ou um café numa padaria.


D
.: Pra beijar o português......


Z
.: Isso! (rs)... e então tudo começou a caminhar de maneira mais calma, o que pode ser percebido na fluidez do meu trabalho.


D
.:
...sem pressão...


Z.
: Sem pressão e ao mesmo tempo sem prazo. Já comecei a trabalhar em fevereiro desse ano várias bases para novas canções, algumas recentes mesmo, e outras antigas, recicladas; ou mesmo músicas de outros compositores... até que eu chegue a antever um álbum e uma linha de trabalho. Já trabalhei precisamente em 28 músicas, em 20 dias, e isso com o grupo que toca comigo e de quem sou parceiro há muito tempo... e algum convidado, vez por outra; e tudo de maneira calma, tranqüila... é um projeto do tipo caseiro... o co-produtor é o engenheiro de som que tem viajado junto com a gente todo esse tempo... a rigor, tudo acontece bem à vontade. E essa atmosfera me permite ser mais criativo, mais produtivo... e já eu se falou nisso... vamos produzir dois discos, não vamos ficar num só. E há canções tão boas...


D.: Você estará tão bem quanto neste?

Z
.: (risos) eu não sei... eu gostei muito...


D.: Você não jogaria nada na lata de lixo?

Z.: Eu gostaria que não. E há mesmo músicas que devem ser expurgadas; senão elas viram uma coisa difícil de se esquecer; ficam ocupando um espaço na memória... é preciso livrar-se delas, para dar lugar a um trabalho novo, fresco...E então chegamos à origem da questão sobre fazer dois volumes. Certamente este aqui tem uma identidade mais rítmica, mais festiva; e o próximo será mais calmo, mais doce; e finalmente serão dois discos, com a mesma sonoridade de um mesmo grupo de músicos tocando juntos, mas sem que haja uma coisa conceitual, estudada, cerebral...

D.: ...
É verdade que eu acho esse disco menos cerebral, mais leve que “Líricas”, por exemplo... Mas me desculpe que vou fazer a mesma pergunta que tudo mundo já fez, ou vai fazer... sobre o título ( “O Coração do Homem Bomba” ). Sorry!

Z.: Que nada, sem problema... eu me disponho a responder a qualquer pergunta (rs). O álbum abre com uma vinheta de poucos segundos... tum-tum, bum-bum (rs)... é um tipo de compasso para acalentar... de “acalanto”, “malambaia” ( cantigas de ninar para crianças ); e esse ritmo ficou na minha cabeça, e eu senti que esse timbre soava bem, e era provocador de uma certa maneira... aquilo podia sugerir várias definições... eu entrei em alguns blogs. Eu li que que eu promovia o terrorismo, coisas brutais – isso vindo dessas pessoas que só lêem as coisas literalmente. Mas trata-se de uma alegoria com a vida contemporânea. As bombas somos nós mesmos, à beira de uma iminente explosão; o que é uma idéia evidente, eu sei, não é uma teoria original... Mas se existe alguma coisa que pode fazer retardar o processo de explosão, essa coisa é a música... é a arte de uma forma geral, e a música popular mais especificamente. É que a música tem um aspecto assim, mais imediato, instantâneo. Ela tem um formato mais simples do que as artes plásticas, o teatro, o cinema... é um vetor mais democrático... uma música nos vem, assim, como se diz... como é bom... uma canção de Ray Conning... Jaques Brel ( rs). Existe uma certa onipresença da música popular... ninguém vive sem a música, jamais; mas muita gente pode viver sem teatro, cinema ou outras formas de arte...

D.
: Conheço gente que não tem o menor interesse por música: meu pai, por exemplo; um grande amigo meu..., pra eles a música só serve como fundo sonoro.


Z.: Ah, é ? Mas peça a essas pessoas que puxem do fundo de suas memórias uma música... mesmo uma canção que cantavam pra elas quando ainda eram crianças...

D.
: É verdade que meu pai escutou muito “The Platters”...


Z.
: “The Platters”!!... “Only You”..(cantarolando)! ( rs ).


D
.: Bom, deixemos meu pai quieto. Por que dois volumes, e não um álbum duplo?


Z
.: Eu não gosto... acho muito indigesto... Mas dentro desse contexto, é fato que é uma experiência, essa de lançar dois volumes em três meses... Talvez não seja uma boa estratégia; é uma experiência... comercialmente muita gente acha que não vá funcionar... que os dois discos vão acabar se anulando; vão rivalizar entre si.


D.
: Existe um bom exemplo, a partir da Marisa Monte, com os dois álbuns “Universo ao meu redor” e “Infinito particular”, que venderam bem, ambos...


Z.
: ... mas os dela foram lançados ao mesmo tempo... E, claro, Marisa Monte basicamente é uma artista que vende muito bem... Vamos ver, pode ser uma boa experiência... eu já não trabalho mais tanto em função do mercado fonográfico.... eu já vendi muito bem, e meu primeiro álbum ganhou disco de ouro...


D.: Quais foram os seus melhores em vendas?

Z
.: Os três primeiros: “Stephen Fry...”, “Vo´imbola” e “Líricas” – venderam em torno de 150.000...


D.: ... e não “Pet Shop mundo cão” ?

Z.
: Não ... houve problemas com a falência do selo em pleno processo do lançamento... vendeu 60.000. “Palavras e Silêncio”, com o Fagner, foi igualmente disco de ouro, mas “Baladas do asfalto” teve também uma repercussão menos expressiva.


D.:
Eu achei “Baladas do asfalto” mais difícil de atingir um público mais amplo: mais rock, mais blues...

Z
.: Eu acho que isso se deu num contexto diferente. Os meus três primeiros discos foram lançados numa época de melhores condições de mercado; até mesmo a marisa Monte, que você usou como exemplo, não vende mais como nesses primeiros anos.


D.: Observe que Ana Carolina vendeu muito bem seu último álbum duplo “Dois Quartos”...


Z
: Eu acho isso indigesto; eu não escuto um só disco de uma só vez... Eu preciso refletir sobre ele... Da mesma forma como 50.000 pessoas que irão comprar meus discos no Brasil, esse público vai assimilar isso dentro desses três meses ( três meses entre o volume 1 e o volume 2 ). A gente me pergunta: “Você não acha que é muito pouco tempo entre os dois... ?”. Não, esse projeto é para “agora”. Durante esses três meses, os que quiserem comprar irão comprar; os que quiserem conhecer, buscarão na internet. E assim, finalmente, mais importante para a divulgação do disco – mais do que a imprensa, mais do que as entrevistas, e todas as mídias... é o Show, esse que entra em cartaz agora ( 22.08.2008 ); e esse show vai começar a partir de capitais menos badaladas, como as do Norte do país, como Manaus, Belém... praças mais isoladas, onde os artistas não vão tão freqüentemente... é uma boa forma de se popularizar esse trabalho.


"Todas belas cançoes de amor sao cançoes de despedida..."

D.: E você planeja essa turnée para um ano?

Z.:
Eu creio que sim...quando você vai fazer um show em Brasília, por exemplo, três meses mais tarde há uma expectativa pelo seu retorno. Em Portugal, por exemplo, já me conhecem, e tenho muitos amigos là; e eles lamentam freqüentemente que so faça uma turnée de três meses. Mas depois não há demanda. O mesmo acontece na Espanha, no Canadá... Aqui não; você vai a Curitiba, e você pode retornar ainda três ou quatro vezes mais tarde... Com a tournée “Baladas”, isso durou dois anos. Mas também porque o show evoluiu, e atingiu sua maturidade. Nessa turnée de agora, vai haver mais músicos, vai haver metais... para que o show reflita o disco, bem caloroso, ritmado...


D.: E o repertório inclui o conteúdo do “volume 2” que ainda vai ser lançado?

Z.:
Não! Talvez uma ou dua músicas, e também aquelas que o público sempre pede.


D.:
Para falar mesmo do disco, eu ainda não pude ouvir mais do que uma vez; e assim não posso dar uma opinião minha definitiva; mas eu o achei festivo, alegre, me lembrou aquela tournée que você fez há uns dois anos, que se chamava “O Baile do Baleiro”; estou certo?


Z.:
Ah! Você viu o Bailé?


D.: Sim, e abria com um ritmo meio à la Emerson, Lake & Palmer... e eu pensei comigo mesmo: “olha só, o disco tem o mesmo clima do show...”.

Z.:
É, o clima do disco foi muito influenciado pelo “Bailé”. Esse foi um projeto para se dançar, divertir-se, e de fato essa ambiência permaneceu a mesma no disco.


D
.: Esse projeto do “Bailé” não foi além do Rio, onde eu assisti duas vezes?

Z.:
Não, e a rigor, eu não o promovi além de São Paulo, a sua base. Durou lá. em São Paulo, um mês e meio, toda terça-feira, e foi um grande sucesso. São Paulo é bem receptiva a esse tipo de projeto. Com o tempo, ele cresceu, e me foi requisitado pelo Rio, por Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, etc... Mas era um projeto muito grande para ser levado em paralelo com outro, que era o que estava acontecendo. E eu coloquei ali toda a minha energia e não criei grande coisa. Agora eu devo me afastar. Eu disse a mim mesmo: “Eu vou me dedicar a trabalhar um disco novo e mais tarde eu vou resgatar esse projeto para fazer um dvd”.


D.: Era aí onde eu queria chegar...


Z.:
É necessário que se grave esse dvd, por se tratar de um projeto muito visual.


D.: Todas as turnées da sua carreira foram imortalizadas por um suporte visual, com exceção do primeiro, correto?


Z.:
Sim, eu acho que sou o artista que mais lançou dvd´s aqui no Brasil (rs).


D.
: Em todo caso, é formidável para mim, que moro longe, saber que é possível através dos dvd´s assistir aos shows brasileiros mais importantes. E voltando ao disco, há um tema que recorrente, em pelo menos três canções, que é o retrato daquela mulher superficial, que você já tratou varias vezes, que tem a seu lado um pobre sujeito, um desgraçado, que diz não receber nada em troca, e que é abusado por ela...


Z.:
(rs) E a minha mulher me disse: “Todo mundo vai pensar que eu sou assim!”


D
.: Será que o pobre Zeca sofreu tanto assim em sua vida por causa das mulheres?

Z.:
(rs) É muito mais interessante fazer músicas que falam de separações do que de um amor que funcione. Todas as canções de amor são canções de despedida, não?


D.
:Sim, como a grande parte das músicas do Roberto Carlos... Nesse álbum aqui tem “Você é má”...


Z.:
...e “Ela falou, malandro”; essa é uma mulher terrível! Essa sim é uma mulher terrível! ( achando muita graça ). É um tema inerente à música popular; se você se lembrar de algumas composições de Cole Porter, Gershwing, Noel Rosa... tem lá essa mulher, essa megera mítica, essa bruxa; mas eu te juro que esse tipo não tem nada a ver com a minha mulher ... tadinha!...


D.: esse “tipo” é muito presente em Jacques Brel, justamente...


Z.
: ...em Gainsbourg também... mas ela guarda também uma grande ironia...


D.: Já tinha trabalhado com o André Abujamara cuja canção “Alma não tem cor”, vocé retomou?


Z.:
Nós nos apresentamos juntos em Cannes, no Middem, e foi a festa total! É uma figura! E essa canção surgiu no repertório dos meus shows em 2006. E todo mundo acha que é uma composição tipicamente minha...


D.: Em todo caso, ela se encaixa pefeitamente no espírito do disco.


Z.:
Absolutamente, e ela é muito alegre, a garotada pede em todos os shows. Ela ficou tão incorporada ao show que eu decidi incluí-la no álbum. Era o momento; ela tem uma função despretenciosa, fluida...


D.: E uma vez seguindo o fio condutor do disco, há dois títulos bem “Baleirista” que são “Madureira” e “Elas por elas”... essa prática de composição que você tem de misturar as expressões tipicamente inglesas, francesas, é uma coisa muito sua...

Z.:
É, eu gosto disso; é como a expressão “mise-en-scène”, que eu escrevi à brasileira, é mesmo intencional... você não vai encontrar no dicionário, mas é um mote já tão incorporado à linguagem cotidiana... mas não à escrita. Eu me permito escrevê-lo à brasileira.


D.: E essa mistura de motes estrangeiros... os brasileiros entendem?


Z.:
Eu penso que sim, mas evidentemente essas “piscadas de olho” musicais mais sutis não aparecem para além da música popular – são os “trava-língua” ( jogos de palavras ). E agora para o show, eu coloquei uma canção de dois “emboladores” nordestinos que se chama “ O Coco do trava-lingua”. E eu mesmo não sei como é que eu vou interpretá-la, eu não sei nem ainda de cor as palavras. Poderia ter sido composta até por um poeta concretista como Augusto de campos, salvo o fato dela ter sido composta por analfabetos.


D.: Mas não é para ser cantada a dois?

Z.:
Não! Enfim, deveria, sim, ser cantada a dois – uma “embolada” se canta a dois, por definição, ..é um desafio; mas eu vou cantá-la sozinho. Não sei como..(rs)


D.: Você agregou uma outra vinheta, composta com o Chico César, “Aquela prainha”...


Z.:
Nada de pessoal contra os gringos, sabe (rs)! A letra é do Chico, e talvez não faça diferença se fala daquela praia do Ceará ou de qualquer outro recanto que os seus amigos europeus compraram... Por um lado é bom, mas por outro eles dominam a arte de devastar esses belos recantos... enfim, às vezes se instala um tipo de convivência com uma certa consciência do meio-ambiente; mas, claro, há uma piscadela de olho meio irônica sobre tudo isso...


D.:
Ainda nesse álbum, encontramos músicas que seriam mais um exercício de estilo do que propriamente voltadas para algum “conteúdo”?


Z.:
Vez por outra, sim; é só isso, mais um exercício verbal, como em “Nega, neguinha” ou mesmo “Elas por elas”...


D
.:
Parece que às vezes o que vale é rimar a qualquer preço... no fundo, você jamais pensou em escrever a poesia sem a música...


Z.:
Sim, já; mas eu nunca publiquei, e nem sei se publicaria um dia.


D.: Mas tratam-se de textos ou de poesias... ?


Z.:
É poesia; eu comecei a escrever a partir da inspiração poética; e depois, enveredado pelo caminho da música, eu fui abandonando... Agora, eu eventualmente exercito meu texto como cronista, a pedido da revista “Isto é”. Eles me convidaram a participar mensalmente.


D.:
... com o objetivo de ...


Z.:
Com nenhum objetivo ao certo... Diversificar.


D.: “A Crônica do Baleiro”...


Z.:
Poi é; há quatro cronistas que se revezam a cada semana... e dentro do meu site eu já venho escrevendo um pouco também. É um espaço onde compilo alguns de meus textos... Mas eu não me sinto investido de qualquer tipo de “missão literária”... hoje em dia pouco importa se escrever um livro... isso festá banalizado.


D.:
Bom, mas quando você faz uso do efeito desses textos “diferentes”, nem que apenas para jogar com com o som desses motes, você o faz sobre uma melodia já composta?


Z.:
Não, geralmente elas caminham justas – letra e melodia – e o tratamento desses motes é conduzido pelo ritmo deles mesmos.


D.: Mas tem algo de muito nordestino nessa forma de compor...

Z.:
Completamente; os repentistas, os emboladores, fazem um tipo de arte popular que eu admiro muito.


Luiz Ayrao, autor de sucessos para Roberto Carlos.

D.:
Você também nutre uma certa admiração por certos autores obscuros; pouco conhecidos ou “malditos”, como Luiz Ayrão, que consta do seu álbum. Quem é ele?


Z.
: Luiz é um compositor que começou com canções para o Roberto Carlos nos anos sessenta. Ele fez sucesso através de duas canções que Roberto cantava e que as pessoas não sabiam quem era o autor... Uma é “Ciúme de você” ( cantando "... mas é ciúme, ciúme de você, ciúme de você..." ) e a outra... é uma música que a Vanessa da Mata gravou... “Nossa canção” ( "Ei, preste atenção... essa é a nossa canção... vou cantá-la seja onde for..." ) . Bom, é dele, é ele é um craque! E dali, para os anos setenta, ele se tornou sambista e começou a lançar discos de samba. Um tipo de samba que o público apelidou pejorativamente de “samba jóia”, no estilo do Benito di Paula, Originais do samba. Eu adoro esse tipo de música. É muito popular, na cabeça das paradas de sucessos.


D.: Do tipo “cafona”, como se diz aqui?


Z.:
Sim, mas com o passar do tempo, elas são ouvidas dissociadas daquele tempo...


D.: “Cafona” ou “brega”, qual a diferença pra você... ?


Z.:
Ah, por assim dizer, é a mesma coisa ... (rs)...mas eu adoro... Como Odair José; mas o Brasil é desse jeito: a gente gosta em segredo, mas não gosta de confessar. É como com os filmes do Almodóvar, com todo aquele “kitch” espanhol, eu acho que é o máximo! Mas no Brasil, ele é esnobado... Pode parecer coisa de liquidação, mas esses cantores têm um valor cultural real. Eu gosto muito de beber dessa fonte dos anos setenta. Essa canção do Luiz Ayrão é de 74... e já se vão 34 anos... parece uma eternidade. Um jovem fã que veio ao meu show, nunca tinha ouvido falar dele. Mas se ele for curioso, ele vai revisitar a obra desse compositor, e vai descobrir coisas fantásticas.


D.: A propósito, me lembro de ter visto alguns cartazes do Luiz Ayrão pela cidade...


Z.:
É possível... ele tem mais de sessenta anos hoje, e é jurado de um programa de calouros, muito popular...

Sergio Sampaio (1947-1994)

D
.: Um outro personagem da música brasileira, bem diferente, que não é conhecido na Europa, que é o Ségio Sampaio...

Z.:
... nem no Brasil!


D.: Eu tenho a impressão de que ele é um artista meio ‘cult’, é isso mesmo?

Z.:
O Sérgio tem uma história muito curiosa. Eu o conheci quando eu ainda era moleque. Os meus irmãos tocavam violão, e eles eram um pouco mais velhos... e levaram o primeiro disco do Sérgio lá pra casa. E fez um sucesso popular extraordinário em 72, 73. Um título que era “Eu quero botar meu bloco na rua”. Era um verdadeiro hino na época da ditadura. Um tipo de canção rebelde que as pessoas cantavam nas ruas, e que vendeu 500.000 exemplares... de compacto simples, sabe... Só um Roberto Carlos podia chegar a um número desses. E a partir daí ele não fez mais nada, nem mesmo quis fazer; você sabe: fazendo o tipo “marginal”... Ele não fez mais qualquer sucesso, e sua carreira desabou dentro de um certo ostracismo... Ele caiu no esquecimento com apenas três discos... O último que ele lançou vai ser relançado com o meu selo, “Saravá Discos”, remasterizado. O Sampaio morreu em 1994, ainda muito jovem, com 47 anos. Ele era “junky”...


D.:
Morto jovem e “junky”, tudo para virar cult...!

Z.:
Pois é, e em 1997, eu participei de uma homenagem que fizeram a ele que se chamou “Balão de Sampaio”, e foi através dessa homenagem que me tornei amigo de seu filho e de sua ex-mulher, duas pessoas adoráveis dos quais sou amigo íntimo. E ela me deu, logo depois daquela ocasião, uma fita k7 demo com diversas canções de Sampaio. Havia a intenção de lançar o primeiro “CD” de sua carreira; mas ele morreu no ano seguinte de uma pancreatite crônica que ele tinha desde a sua juventude. Enfim, uma história breve e trágica, que o colocou nesse panteon cult, mítico, dos artistas “marginais”. Histórias que as pessoas adoram, evidentemente... quando estão vivos ninguém lhes estender a mão, mas depois todos passam a adorar...
O Sérgio Sampaio, foi uma referência muito forte para mim, e então eu relanço esse álbum que se chama “Cruel”, e eu estive sempre associado a ele... muita gente o conheceu através de mim... ele estava completamente esquecido pelas pessoas, mesmo pelos próprios fãs.

D.: Eu mesmo o conheci através desse disco-homenagem de 1997, e essa música famosa, “Eu quero botar meu bloco na rua”...


Z.:
Uma canção envolvente; eu já cantaria “Tem que acontecer”...


D.: Voltando ao seu novo álbum, eu saquei um truque... o título “Você é má”; eu acho que já tinha ouvido esta canção...


Z.:
Um programador de rádio me disse a mesma coisa ontem ( rs). Parece um tipo de canção familiar, a não ser que eu tenha plagiado a mim mesmo, inconscientemente (rs).
As pessoas já a cantam em coro comigo... e eu não a canto há mais de uma semana. Já é um hit. Eu vou fazer uma enquete (rs) pra saber se eu me plagiei.... !!

D.: Já tem algum título que toca nas rádios, um single que, como se diz, “puxa” o álbum?


Z.:
Na verdade, essa forma de funcionamento não acontece ainda muito aqui no Brasil. No Rio, a gente tem duas rádios importantes que tocam MPB: a JB FM e a MPB FM. A JB escolheu “Você é má”, e a MPB FM ainda não encontrou uma música adequada, ainda está à procura... Sobre o álbum, não tem muitas canções no “formato rádio”. No ‘volume 2’, já vai ter mais...


D
.:
O mais engraçado no “Coração”, talvez sejam as vinhetas, aquela do Beethoven...


Z.:
(rs) Essa é engraçada... Talvez seja “paulistana” demais!. Na verdade é uma referência aos caras que vendiam gaz em São Paulo, de porta em porta, o caminhão deles tocava “Pour Elise”, de Beethoven; é muito característico... mas isso tem uns 15, 20 anos... quando o caminhão deles passava, a gente ouvia Beethoven através daquele som horrível...desafinado.


D.:
Eu não acho que todo mundo vá entender (rs).


Z.:
Não vai, não; mas eu acho ela divertida (rs).


D.: A mesma coisa com relação a “Nega, neguinha”; você faz muitas referências ao Candomblé... eu me pergunto se todo mundo aqui compreende esse olhar multicultural...

Z.: É sobretudo um jogo com os motes mais uma vez, um gracejo verbal , como eu chamo, sobre a “bahianidade”, a “africanidade”... todas essas coisas que são ditas sem sequer saber do que se trata verdadeiramente....

...Onde andara Geraldo Vandré?

D.:
Ok, e a gente termina falando sobre o título que fecha o teu álbum, essa carta ao Geraldo Vandré... eu me lembro de ter lido n´O Globo, uns meses atras sobre um leitor que se perguntava onde ele ficava, o que acontecia com ele...a canção vem desse fato?


Z.:
É uma figura muito enigmática da nossa música um tipo de esfinge... ninguém sabe ao certo se ele foi torturado pelo regime militar, ou se sumiu por motivo fútil... mas ninguém sabe de verdade. Dizem que ele é visto freqüentemente em Teresópolis, barbudo, e que mora entre lá e São Paulo... Ele se tornou meio eremita... é uma figura curiosa que eu sempre achei enigmática. E o Chico Cesar, com quem eu não compunha desde muito tempo, me enviou uns esboços de textos cujo um sobre ele que achei fantastico... fazia alusão também àquela marcha da qual ele participou nos anos 60, contra a guitarra elétrica na MPB. É um episódio célebre dentro da época do Tropicalismo, com aquele antagonismo entre as figuras tradicionais da MPB e aqueles músicos cabeludos que queriam mudar a situação – a época dos “Mutantes”.
É uma das reivindicações mais estranhas da história da nossa música. Até o Gil, eu acho que participou...

D.:
Gil? Mas ele usava guitarra elétrica na época!
Os Mutantes eram atras dele...

Z.
: Sim, mas era mais para efeito das manifestações; e havia também o Edu Lobo; enfim, era uma época de confusão ( 1966-67 ). Mas tem uma coisa engraçada: de uma certa maneira, essa marcha deu resultado. Agora todo mundo quer lançar um disco acústico. Não por ideologia, mas por tendência do mercado ( rs). Todo mundo quer lançar seu “Unplugged”; é muito doido! E eu fiz essa música meio bossa... Mesmo que o Geraldo nunca tivesse feito Bossa Nova... mas aquilo tinha a ver com aquela batalha absurda e nacionalista.


D.:
E a carreira dele, durou até quando?


Z.:
A carreira dele foi muito curta, eu acho que depois disso, ele não fez mais nada; Mas ele tinha uma canção super boa: “Fica mal com deus”, que é a minha favorita. Ele fez belas músicas; mas ele é mais conhecido por aquela “caminhando cantando...” o hino contra a ditadura, que até Charlie Brown Jr. trouxe à cena. “Pra não dizer que não falei de flores”.


D: Ah é ? Mas você retomou Charlie Brown Jr, então...nada me surpreende mais...

Z:
(rs) pois é... enfim, em 1978, relançaram um compacto duplo 45 com “Pra não dizer” e “Fica mal com deus”; e foi um sucesso. Mais tarde a Simone relançou também e foi um grande sucesso popular... Acho que ele esta vivendo de direitos autorais, porque essa música ainda toca constantemente no rádio ou em shows.


D.: De volta ao seu disco, “Toca Raul”, já estava disponível...

Z.: Sim, através do meu site, desde dezembro de 2007...


D.: Você a regravou para o disco?

Z.
: Não, eu só remixei... Dentro de todo show pop, tem sempre um entusiasta que te pede pra tocar alguma música que ele gosta, mesmo de um outro artista... No início é só isso; mas depois, vira uma “onda” entre os amigos.


D.: Bom, e agora vai virar um pesadelo, que esse titulo vai levar...

Z.:
(rs) sim, eu criei um monstro!


D.: Antigamente, a gente gritava para que você tocava “Lenha”. Eu li que você não gosta tanto de “Lenha” ( hit do segundo álbum ).

Z.:
Não, tem muita gente que fala isso, mas não é assim. Eu tenho consciência que essa não é uma canção “menor” do meu trabalho... É o meu maior sucesso popular.
É uma canção tão simples em sua concepção que ela toca um grande número de pessoas... mas evidentemente eu não quero cantá-la pelo resto da minha vida.

D.: Pode ser uma canção “brega”...

Z.:
..é, e uma dupla sertaneja retomou “Lenha”; imagina! Mas é bom...Tudo mudo pensa que a canção é deles (rs)


D.:
Bom, Antes de terminar, já que eu vou receber de graça os discos do seu selo “Saravá” (rs), você pode adiantar alguma coisa?


Z.:
Sim, e agora estão saindo duas novas trilhas sonoras, ligadas a espetáculos de dança cuja "Geraldas e avengas" e também o primeiro disco do Tiago Araripe, um cantor do Ceará, que participou de maneira mais periférica da vanguarda de São Paulo; tem um álbum de Lopes Bogéa, e do Antonio Vieira, que é um sambista de 87 anos; esses são os pricipais projetos realizados...


D.: Eu adorei o disco de Lopes Bogéa... mas não são álbuns pra se ganhar dinheiro...

Z.:
(rs) De jeito nenhum; eu gasto mais do que ganho... É esse o impasse do selo nesse momento. É um luxo... um luxo que me custa caro! (rs). Há que se reorganizar para viabilizar isso... Você tem razão; são bons projetos, eu gosto desses “produtos”, mas não é muito viável comercialmente... Porém o disco da Hilda Hirst vendeu até agora 5.000 cópias.


D.: É sua contribuição à cultura, um pouco elitista, talvez..?

Z.:
Sim, mas também é importante.... e agora eu produzo um cantor angolano, que se chama Filipe Mukenga, que é um artista muito interessante também; ele já trabalhou para Flora Purim, Djavan, e que ficou muito tempo sem gravar. Nós nos reencontramos em Cabo Verde, ficamos amigos e eu propus a ele produzir um álbum... esse será o último dessa fase do selo; em seguida vamospensar seriamente em reestruturar a parceria para obter obter uma melhor distribuição... Deve acontecer por volta de outubro.

Desde a entrevista, o Zeca continua sua turnée, e eperamos aquele "volume 2". Quem quiser conferir, "Débora", "Tacape", "E como diria Odaïr" estao disponivel no site oficial do cantor...


"Toca Raul"

7 commentaires:

Márcio a dit…

Gosto do som de Zeca Baleiro. Infelizmente a maioria das vezes que ele vem tocar em Brasília é em lugares abertos, em eventos destinados a um público predominantemente pós-adolescente. Resultado: colocam outra banda para tocar antes e o show dele só vai rolar depois da uma da manhã ... Aí eu estou fora! Na próxima vez que você falar com Zeca Baleiro, Daniel, pergunte sobre a participação dele no segundo CD do Teatro Mágico, grupo independente que, ausente da grande mídia, é um fenômeno de popularidade em shows e na internet aqui no Brasil.

Me desperta curiosidade a participação de Gilberto Gil na marcha contra as guitarras em 1967, justamente ele que é um dos artistas menos preconceituosos que conheço. De qualquer modo, foi num momento imediatamente anterior à explosão da Tropicália. Acho que pode ter pesado, na época, a influência de Elis Regina, que foi uma das primeiras a dar força a Gil.

Antes de terminar, repito o que já escrevi aqui uma vez: ao contrário da Europa e dos EUA, os compactos (simples ou duplos) lançados no Brasil eram de 33 1/3 rpm, não de 45 rpm. Um abraço!

Anonyme a dit…

Inteligente demais, o Baleiro! Adoro o multi-tudo dele. Tem forma e conteúdo, o Zeca.
Bela entrevista; mostra a generosidade do artista.

Anonyme a dit…

Que maravilha de entrevista!!!! Que papo deliciosos!!!!!
Show de bola, amigo!!!!!!
Parabéns!!!!!

Daniel Achedjian a dit…

Oi Marcio! Sua historia de show depois de meia noite me fez lembrar dois shows aos quais quis assistir noo Circo Voador na Lapa: Nando Reis e a banda Moinho. As 2h da manha, ainda nao tinha começado...e desisti.
...Com certeza, o Gil é um dos artistas da MPB tradicional mais aberto as culturas do mundo. Na verdade nao conferi se realmente ele participou dessa marcha...Abraço!

Daniel Achedjian a dit…

Pois é, Jane, tinha um bom "feeling" durante essa entrevista. Deu vontade de se rever, com certeza...bjs

Daniel Achedjian a dit…

Obrigado Cal!! Outras entrevistas virao!! Abraço...

Jorge Ramiro a dit…

Acho que devemos preservar todas as expressões culturais, para que possamos desenvolver nossas manifestiaciones populares. Eu tenho um Petshop on-line, mas eu também sou um músico. Eu não sou nenhum profissional, mas eu gosto de tocar música e bossa.

CE BLOG EST DÉDIÉ AUX CURIEUX QUI AIMERAIENT CONNAÎTRE L'ART ET LA MUSIQUE POPULAIRE BRÉSILIENNE. UNE OCCASION POUR LES FRANCOPHONES DE DÉCOUVRIR UN MONDE INCONNU OU IL EST DE MISE DE LAISSER SES PRÉJUGES AU VESTIAIRE.